A Bíblia, com os comentários de Nicolau de Lira, dita Bíblia dos Jerónimos, (a que se deve agregar o volume iluminado das Sentenças de Pedro Lombardo, teólogo do séc. XII, que com ela forma uma unidade artística), foi encomendada por Clemente Sernigi para ser entregue a D. Manuel I quando era ainda Duque de Beja e príncipe herdeiro (1494).
Várias têm sido as hipóteses avançadas quanto à origem da Bíblia. Autores há que consideram a hipótese de se tratar de um presente dos florentinos estantes em Portugal e interessados nos descobrimentos portugueses, ao futuro monarca português. O facto de, porém, figurarem igualmente, as armas da rainha D. Leonor, irmã de D. Manuel e mulher de D. João II, no Mestre das Sentenças, que fez parte da mesma encomenda, parece indiciar antes uma oferta desta princesa, que teve, como o irmão, um culto bem renascentista pelo fausto artístico, como o provam, entre outras realizações, a Madre de Deus e a Vita Christi. Seja como for, a Bíblia dos Jerónimos e o Mestre das Sentenças constituem o primeiro grande marco e o primeiro sintoma da predilecção manuelina pelo belo e o luxo.
Trata-se de uma obra absolutamente ímpar que tem arrancado expressões de admiração a quantos a folhearam. Do conjunto de sete volumes que é a Bíblia dos Jerónimos, já se considerou que “quanto a livros de iluminuras, possui Portugal um tesouro ao qual nenhum outro se pode comparar. Vi a rica colecção do rei de Wurtemberg, vi os manuscritos iluminados de Viena, Paris, Turim, Milão, Siena, Roma, Nápoles, Monte Cassino e da Cava, mas nada acho que se ponha a par do tesouro de que falo, a Bíblia em sete volumes com comentários de Nicolau de Lira, conhecida por Bíblia dos Jerónimos por ter sido testada por el-rei D. Manuel aos frades Jerónimos em Belém” (Luígi Cibrairo), que “a Bíblia dos Jerónimos [...] constitui um dos mais primorosos manuscritos iluminados do século XV, e é um dos mais valiosos monumentos da notabílissima perfeição a que chegou a caligrafia e a miniatura.” (Esteves Pereira); que Pedro A. Azevedo e de António Baião: “Há nelas [nas páginas da Bíblia dos Jerónimos] miniaturas delicadíssimas, tarjas de uma finura sem igual, figuras de uma correcção admirável, vinhetas e arabescos verdadeiramente engenhosos” (Pedro A. Azevedo e António Baião); ou ainda que se trata da “obra mais sumptuosa de quantas sairam das oficinas florentinas do século XV” (Paolo d´Ancona).
Embora possa haver transparente exagero nestas palavras, a verdade é que, mesmo com desconto, não deixam de ser reveladoras.
A Bíblia dos Jerónimos provém da oficina de Attavanti Gabriello di Vante (Vante Attavante ou Attavante degli Attavanti). Quer a Bíblia quer as Sentenças encontravam-se outrora ricamente encadernadas, de acordo com as informações do “Lyuro da recepta das joias e vestidos e cousas outras, asy das que estauam na guarda roupa como no tisouro que ficarão del Rey dom Manoell ...”.
De tão preciosa, foi a Bíblia dos Jerónimos objecto da cobiça do General Junot, que a levou para França, apenas sendo recuperada por compra que do seu bolso fez o rei Luís XVIII à viúva do marechal napoleónico.
A 21 de Abril de 1815, quatro dias volvidos sobre a restituição, os monges, congregados em capítulo, ao som da campainha tangida, ouviram o relato da recuperação, lendo-se a comunicação que sobre o assunto enviara ao D. Abade o ministro dos Negócios Estrangeiros, D. Miguel Pereira Forjaz.
Mal podiam os Jerónimos adivinhar que nem duas décadas volvidas o Mosteiro dos Jerónimos seria extinto com as demais congregações religiosas. E que a Bíblia começaria outra “via-sacra”. Correu ela, então, com as demais preciosidades, entre as quais a Custódia de Belém, novos riscos. Salvou o tesouro do Mosteiro dos Jerónimos Frei Diogo do Espírito Santo (no século Diogo de Faria e Silva), que foi nomeado depositário dos bens do Mosteiro à data da extinção das Ordens e que, com risco para a própria vida, conseguiu depositar no Erário Público, elevada quantidade de bens quando se projectava um ataque ao convento.
Daí, de acordo com documentos existentes na Casa da Moeda, esteve a Bíblia dos Jerónimos na posse do Banco de Lisboa tendo transitado para a Casa da Moeda a 05 de Novembro de 1833. Ano e meio volvido, sem que pessoa alguma lhe tivesse tocado, em 1835 são os sete volumes da Bíblia dos Jerónimos entregues ao Real Archivo da Torre do Tombo, onde se mantém até hoje sendo considerada “a Jóia da Coroa”.
Adaptado de “Tesouros da Torre do Tombo”, Professor Doutor Martim de Albuquerque, INAPA e AN/TT, 1990.
Bíblia dos Jerónimos, explicação de frei Ambrósio às epístolas de S. Jerónimo, liv. I, fl. 5v.
Manuscrito iluminado do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, do último quartel do séc. XV. A obra de iluminura é dos artistas florentinos Attavanti e irmãos Gherardo e Monte del Fora. Texto latino a 2 colunas, com letra da renascença italiana; escrita em velino da melhor qualidade. Dimensões: 0,410X0,283.
Existe na Torre do Tombo um códice quinhentista – descoberto por Sousa Viterbo – onde aparecem inventariados os bens da herança de D. Manuel I, falecido a 13 de Dezembro de 1521, entre os quais figuram os livros da sua biblioteca: é o Livro de recepta das jóias e vestidos, etc. No item 9 da biblioteca descreve-se o lote em que figura a Bíblia dos Jerónimos:
«Oyto livros de Bribya que forom a Belem com suas gurnições per imteiro soomente a huu deles faltava huma brocha... cubertos de veludo cremezim, gurnecidos de prata dourada e anyallada (sic) e com oyto camtis cada hum e com quatro fyvelas com suas charneiras com que sabrocham e oyto boulhões, e dous escudos d'armas em cada hum, tudo de prata, e os boulhães soomente tê hum deles e todolos outros todolas outras peças, e hum destes livros é cuberto de veludo azull, que se chama Mestre das Sentenças, e tem hum letreyro de prata...».
Declara-se mais que as guarnições de prata dos 7 volumes da Bíblia pesaram 45 marcos, 6 onças e 7 oitavos, nada se dizendo quanto ao peso da prata do Mestre das Sentenças. A encadernação actual, de marroquim encarnado, é bem diferente e menos valiosa. No último quartel do século XV eram notados entre a colónia italiana de Lisboa dois grandes negociantes florentinos: Bartolomeu Marchioni e Jerónimo Sernigi; aquele de maior relevo ainda pela extensão das suas iniciativas e relações de carácter económico com a casa real portuguesa.
Provavelmente um e outro negociavam já com o açúcar produzido na Madeira. Escreve Sousa Viterbo:
«Marchioni cabe-lhe um lugar de primazia na história da nossa vida económica... por isso que, já individualmente, já associado a outros seus compatriotas, foi um dos principais agentes do tráfico do açúcar madeirense, e tanto que D. Manuel, proibindo, pela sua ordenança de 21 de Agosto de 1498, interferência dos negociantes estrangeiros no tráfico do açúcar madeirense, faz honrosa excepção de Bartolomeu Marchioni e Jerónimo Sernigi: “... hos mercadores nossos naturaes, no comto dos quaes queremos e nos apraz que caybam Bartolomeu Frorentim e Jeronymo Sernige; e antam entraram os estrangeyros”.»
Outro facto digno de nota, se dera anteriormente: em 23 de Abril de 1494 firmava-se em Florença, no cartório do tabelião Giovanni Carsedone, um contrato em que foram outorgantes Clemente Sernigi, irmão do negociante florentino já citado, e o iluminador Attavanti. Tratava-se da iluminação duma Bíblia com comentários de Nicolau de Lira, em 7 volumes, e do Mestre das Sentenças em I volume. Não há hoje a menor dúvida de que os 8 volumes são os que se encontram na Torre do Tombo.
Iniciaram-se os trabalhos no ano de 1494, após o referido contrato, começando pelo Mestre das Sentenças, que ficou pronto em 13 de Dezembro daquele ano, o que consta da subscrição final do escriba. Em Julho de 1497 concluía-se a iluminação do 7.º volume da Bíblia. Estava finda a grande obra de arte da iluminura florentina, mas Attavanti tinha tido o auxílio doutros artistas afamados, como já se referiu.
Os 8 cimélios vieram depois para Portugal. Ao tempo do falecimento de D. Manuel encontravam-se no seu guarda-roupa. O venturoso soberano legou-os ao Mosteiro de Belém, onde deram entrada em Fevereiro de 1522: ali se demoraram até a 1.ª invasão francesa (1807-1808). Junot levou-a para França mas mais tarde Luís Filipe, rei de França, comprou-a e restituiu-a ao governo português.
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume IV, pp. 644-645.
Decoração dos livros manuscritos ou impressos mediante desenhos e pinturas manuais em ouro, prata e diversas cores. Inspirou-se nos séculos III e IV, mas floresceu especialmente na alta Idade Média, devido ao trabalho dos monges na decoração da Bíblia e de livros litúrgicos, e na baixa Idade Média, onde se encontram já artistas iluminadores ou miniaturistas trabalhando para reis e nobres.
Em Portugal conservam-se valiosos códices iluminados do século XII, tais como o Livro das Aves (1183) e o Apocalipse do Lorvão (1189), sendo ambos iluminados no Mosteiro de Lorvão.
No século XIII assinalou-se no cultivo da iluminura o Mosteiro de Alcobaça, restando várias bíblias iluminadas. À influência bizantina juntou-se então a francesa. Do século XIV são o Cancioneiro da Ajuda e as bíblias da Torre do Tombo, entre outros códices. No século XV surgiu a influência da escola flamenga e datam de então o Livro da Virtuosa Benfeitoria, a Crónica da Guiné (na Biblioteca Nacional de Paris) e o chamado (pois é na realidade um breviário) Livro de Horas de D. Leonor.
O período áureo da iluminura em Portugal ocorreu na primeira metade do século XVI, com o Missal de Santa Cruz de Coimbra, os 43 volumes da Leitura Nova e os 15 volumes das Crónicas, o Livro do Armeiro-Mor e o Livro da Nobreza. Do século XVII a obra mais lograda é o Missal Pontifical de Estêvão Gonçalves Neto.
Fonte: Lexicoteca - Moderna Enciclopédia Universal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1984, volume X, pp. 153-154.
Pelo que sucintamente acabamos de expor vê-se que a iluminura em Portugal chegou a atingir, principalmente nos séc. XV e XVI, notável perfeição e desenvolvimento, deixando-nos esta arte obras que podem rivalizar com as mais ricas e perfeitas que se guardam em arquivos, bibliotecas e museus de outros países.
Sousa Viterbo, em comunicação feita à Academia das Ciências de Lisboa, dá conta da existência, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, de um precioso manuscrito que pertencera à casa real portuguesa, um rico breviário executado provavelmente em Roma, sob a direcção do embaixador português enviado por D. Fernando no ano de 1378. No reinado de D. Afonso V, o célebre monge veneziano Fra Mauro iluminava os mapas para o nosso monarca.
É conhecido o gosto que D. João II tinha pela iluminura, arte que muito se enriqueceu com as conquistas e descobertas portuguesas e a influência que exerceram sobre a imaginativa dos iluminadores, oferecendo-lhe novos e variados motivos para a sua inspiração. No reinado de D. Manuel, a vinda para o reino de artistas como António de Holanda, Olivier de Gand, Cristóvão de Utrecht e outros, contribui para o desenvolvimento que as artes e, entre elas, a iluminura, tiveram durante este período.
Nesta arte predominam sobretudo as influências de duas escolas: a flamenga, que influenciou os iluminadores do reino, e a italiana, que exerceu propriamente a sua influência sobre os que viajavam.
Entre os mais notáveis iluminadores, além dos já mencionados, destacam-se Francisco de Holanda, que executou à pena os livros do convento de Tomar e os do mosteiro de Belém; Bento Contreiras, monge carmelita, que iluminou alguns livros da sua ordem, em Lisboa, no séc. XVI; Frei Simão de S. José, monge paulista; Manuel da Purificação, cónego secular de S. João Evangelista, que iluminou, com suma perfeição, livros de coro e de armaria no começo do séc. XVII. (Raczynski, Les Arts en Portugal; Sousa Viterbo, Iluminadores e Calígrafos Portugueses; idem, Livraria Real no Reinado de D. Manuel, in Archivo Historico Portuguez).
A datar da invenção, ou mais propriamente, da vulgarização da Imprensa e aperfeiçoamento dos meios mecânicos para executar a parte escrita do livro e os processos para a sua ilustração, a iluminura começa rapidamente a declinar.
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,
Os mais famosos e notáveis códices e manuscritos iluminados que possuímos são, porém, os que se guardam no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e que formam um dos mais ricos núcleos do nosso património artístico; mencionaremos o Apocalipse de Lorvão, a que já acima nos referimos, o Missal Antigo, o Testamento Velho, o Martirológio, o Livro Primeiro das Missas, o Livro dos Hinos, o curiosíssimo Livro das Aves, em que vários animais desta espécie estão representados em formosíssimas iluminuras a prata e ouro, de grande valor e realce artístico, e ainda outros códices recolhidos, como estes, do cartório deste célebre mosteiro cisterciense; a famosa Bíblia em sete volumes com comentários de Nicolau de Lira, conhecida por Bíblia dos Jerónimos por ter sido testada por el-rei D. Manuel aos frades do mosteiro dos Jerónimos, de Belém, e, segundo a tradição, oferecida a este monarca pelo papa Júlio II; o Mestre das Sentenças, de Pedro Lombardo; o Atlas, de Vaz Dourado, o Livro do Armeiro-mor, o famoso Armorial de António Godinho, alguns códices das Crónicas, o Livro de Horas de D. Duarte, e finalmente a preciosa colecção de 60 códices denominada Leitura Nova, mandada organizar pelo rei D. Manuel, e cuja figura se supõe estar representada no D inicial do primeiro livro desta colecção com o nome de Primeiro Livro da Comarca de Além-Douro.
O frontispício destes códices é profusamente iluminado com interessantes e variados motivos da fauna terrestre e marítima, tais como: animais fantásticos, centauros, aves, borboletas, caracóis, caudas de pavões que se desdobram em leque com matizadas cores e palhetas de ouro de reflexos tão vivos e incandescentes como se acabasse de ser aplicado; flora luxuriante: cravos, rosas, malmequeres, miosótis, frutos; paisagens terrestres com cenas da vida rural, como um lenhador, uma azenha, uma caçada; paisagens marítimas com bergantins, barcos, naus e caravelas, cenas de pesca; cavaleiros da época com a sua característica indumentária; motivos religiosos, como os quatro evangelistas, a fuga da sagrada família para o Egipto, a Verónica; motivos arquitectónicos como o convento de Cristo, de Tomar; anjos alados sustentando o escudo de armas de Portugal, ladeado das esferas armilares manuelinas.
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,
A este gosto pelo monstruoso e pelo grotesco correspondia, à parte uma ou outra excepção, como na cena da vindima do nosso Apocalipse, o desprezo absoluto pela observação da natureza animada e viva, motivo que depois será tomado como principal inspiração na segunda fase da iluminara designada por naturalista.
Nesta primeira fase da iluminura de que temos tratado e em que o artista não procura encantar mas infundir terror, fora da influência do monstruoso aparecem-nos, como motivos para os seus desenhos ornamentais, apenas os pórticos, dentro dos quais são dispostos os cânones dos evangelhos.
Isto se pode também verificar em algumas das iluminuras do códice da Torre do Tombo, em cujas cores o artista empregava apenas o azul, o vermelho, o preto e algumas vezes o amarelo pálido. São estas as cores características das iluminuras deste período, aparecendo também uma cor nova, o verde, que pode ser considerada, da mesma forma, como sinal característico da época.
No séc. XIII a sociedade que sucede à feudal renova-se para se tornar mais polida, de costumes mais delicados e mais inclinada aos divertimentos e cultura do espírito. Opera-se, ao mesmo tempo, na vida literária, um movimento renovador que tem como centro principal a cidade de Paris, com o aparecimento de livros profanos e maior afluência de escolares à frequência da sua famosa Universidade.
Este renascimento reflecte-se também nas Belas-Artes e na preparação de novas cores que os iluminadores profanos, em concorrência vitoriosa com os miniaturistas religiosos, começam a empregar para ornamentar as enciclopédias, as crónicas, as canções de gesta, os romances e as fábulas.
A estas novas cores vem juntar-se o emprego do ouro, tornando as folhas dos códices e manuscritos de tal forma brilhantes e cheias de tão vigoroso relevo, diz Henry Martin, que será difícil verificar se foram os iluminadores dos manuscritos que influenciaram os pintores dos vitrais, ou se foram estes últimos que abriram o caminho aos iluminadores.
São já diferentes os assuntos preferidos pelos novos artistas, inspirando-se não em figuras hieráticas do cristianismo e nas cenas terroristas do Apocalipse, mas em cenas vivas e animadas da vida real, com tarjas surpreendentes que marginam o texto dos códices e manuscritos inspiradas em variados motivos da flora e da fauna, da arquitectura, em quadros onde já se descortinam perspectivas de ridentes e sugestivas paisagens.
Em Portugal a iluminura chegou a atingir, principalmente nos séc. XV e XVI, grande perfeição e desenvolvimento, deixando-nos esta arte obras que são uma das maiores riquezas do nosso património artístico.
É, com efeito, rica de pormenores artísticos e abundante a colecção dos nossos manuscritos e cimélios iluminados; na impossibilidade de publicar aqui O inventário de todas essas preciosidades, que (…) poderá ver, entre outros, nos trabalhos de Sousa Viterbo, de Braamcamp Freire, de José de Figueiredo e no já citado livro O Archivo da Torre do Tombo, seja-nos lícito citar: na Biblioteca Nacional, a bela iluminura que o dr. José de Figueiredo considera uma das mais importantes da nossa escola da primeira metade do séc. XVI, as Regras de Santa Clara, o Livro de Horas da rainha D. Leonor, um exemplar do Fuero Juzgo, uma Bíblia hebraica do séc. XIV, o Speculum Historiale, de Vicente de Beauvais, em oito volumes, as Crónicas de Eusébio, do bispo de Ávila, Afonso de Madrigal, o Livro de Roma Triunfante, do séc. XV.
Na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, o célebre Missal de Estêvão Gonçalves, o Livro das Armadas, Na Biblioteca da Ajuda, o Cancioneiro, A Fisionomia de Rolando, Allebrant de Florence – Traité de Médicine, códice com interessantes iluminuras e letras capitais com ouro em relevo e figuras alusivas ao assunto de que trata cada capítulo (séc. XVI).
No Museu de Arte Antiga, o famoso livro de Horas que se diz ter pertencido a D. Manuel, além de outras espécies iluminadas que se guardam nas bibliotecas: da Universidade de Coimbra, Évora, Braga, Municipal do Porto e Museu de Castro Guimarães, de Cascais.
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,
O carácter da iluminura medieval e da obra saída do scriptorium dos mosteiros é, pois, circunscrito às cenas dos livros sagrados, especialmente até os fins do séc. XII, porque até este período a vida intelectual, literária e artística quase só medra nos claustros. As causas deste facto são bem conhecidas e todas filiadas na poderosa influência do clero, que já vinha de longe e que principalmente se acentuou na monarquia visigótica desde a conversão de Recaredo ao cristianismo.
O artista, em todo este período, tem horror ao verdadeiro, a natureza não o interessa, a vida exterior é para ele completamente estranha. As cenas do Apocalipse, principalmente, contribuem para exercer no seu espírito uma influência nefasta, que se fará sentir mesmo nas iluminuras das outras partes da Bíblia.
Assim se justifica o aparecimento de animais simbolizando certos evangelistas, revestindo formas apocalípticas e a figuração de outros monstros, cenas estas que se podem observar no célebre códice da Torre do Tombo – Comentário do Apocalipse do Beato de Liébona.
É este códice ali vulgarmente conhecido pelo nome de Apocalipse de Lorvão, por ter sido recolhido deste outrora famoso mosteiro de freiras cistercienses por Alexandre Herculano, em 1853. Este raro e curioso exemplar, composto de 218 fólios, escritos a duas colunas, com 29 linhas cada, é cópia feita por um certo Egas, em 1189 (era de 1227), e considera-se como tipo característico, entre nós, desta primeira fase da iluminura.
Apreciando o valor do precioso códice, o professor dr. Wilhelm Neuss, na conferência que sobre ele fez em Lisboa, nota a particularidade de nos mostrar o regresso à pureza primitiva da arte descritiva, ainda mais pronunciada que nas artes plásticas irlandesas e nórdicas do séc. X.
Dissolve as cenas de tal forma que as várias partes componentes, sem ter em conta a sua posição mútua na realidade, são colocadas simplesmente umas junto das outras somente para dar a quem contempla testemunho da sua existência. O iluminador adora a narrativa, como se pode ver, por exemplo, na cena da vindima, em que se nos dá a ideia fiel da vida do campo dessa época, quadro interessante (…).
Entre as suas outras bárbaras iluminuras destacaremos: a espada de dois gumes que sai da boca do Senhor; o Sol, que representa a sua face; as sete igrejas; as «chaves da morte e do inferno»; figuras de condenados às penas eternas, em cima um vulcão, cujo interior simboliza o próprio inferno e a sua entrada fechada pela chave de Deus; uma pomba branca, saindo da boca de uma figura aureolada, representando a pura e sã doutrina de Jesus; os três animais: águia, leão e touro, representando, respectivamente, os três evangelistas: S. João, S. Marcos e S. Lucas; no meio o cordeiro de Deus com uma cruz e ao fundo outra figura com outro livro representando o 4.º evangelista, S. Mateus; interessantes são também as figuras de Abbadon equestre, coroado e armado de arco árabe, e a dos três cavaleiros, representação directa dos guerreiros portugueses do tempo de Afonso Henriques (…), e de que o sr. dr. Júlio Dantas se ocupou no seu modelar estudo Os cavaleiros.
Tal é a arte do Apocalipse de Lorvão, que Dieulafoy apelidava de bastante rude e muito curioso, e o citado prof. Neuss considerava extremamente infantil, causando-lhe admiração encontrar, no séc. XII e na Europa um lugar onde se trabalhava de uma maneira tão primitiva.
Esta inclinação a criar monstros apocalípticos não era, afinal, simples apanágio dos pintores dos códices e manuscritos desta época, como faz notar Henry Martin (Les Peintres des Manuscrits et la Miniature en France), pois que os escultores, neste ponto, não lhes ficavam atrás.
E tão desmarcada e abusiva chegou a ser esta inclinação que ela levava, ao que parece, o próprio S. Bernardo a exclamar com vigor: «para que servem no claustro estas monstruosidades ridículas, estas deformidades, estes leões ferozes, estes monstruosos centauros, estes lobisomens, estes cavaleiros combatentes?!».
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,
A arte de iluminar (pintar). Miniatura a cores dos antigos manuscritos: «A letra era um verdadeiro primor caligráfico; e a iluminura tarjava os livros e adonairava as iniciais dos capítulos... com magníficas miniaturas», Arnaldo Gama, A Última Dona de S. Nicolau, cap. 3, p. 39.
A iluminura, considerada em Diplomática como sinal e um dos meios de validação e autenticidade dos códices e documentos, é também um dos mais interessantes capítulos da história da Arte, confundindo-se na sua origem com a escrita para vir, finalmente, a identificar-se com a Pintura.
O costume de fazer executar nos códices e manuscritos uma parte decorativa e iluminada, partindo, principalmente, das letras iniciais, tal como se praticou na Idade Média, vem já da mais remota antiguidade, admitindo muitos autores que esta prática era já conhecida e usada no Egipto faraónico, onde esta arte teve como principal centro de maior importância e perfeito desenvolvimento a cidade de Alexandria.
Dali irradiou esta arte, a convite do imperador Constantino, para Bizâncio, passando desta cidade para a Grécia e Roma o gosto dos livros e manuscritos ornamentados com desenhos e pinturas.
Há, porém, alguns autores que afirmam, sem excluir, é certo, a influência da arte bizantina servilmente devota e ligada a certos cânones religiosos que a nova arte medieval do ornato e a miniatura teve uma origem setentrional, bárbara e monástica, pertencendo à Irlanda a glória de a haver iniciado e propagado.
Nesta ilha a caligrafia no séc. VI estava ainda embrionária e a ornamentação de manuscritos dava apenas os primeiros passos, citando-se como prova desta afirmação o Book of Kells, principal monumento da arte rude e fantástica, mas acentuadamente característica dos anglo-saxões.
A fundação dos mosteiros de S. Callo e S. Colombano, em França e na Alemanha, em Svizzera, na Itália, contribuem para propagar esta arte no continente europeu. A cultura carolíngia e o desenvolvimento que sob o seu notável impulso teve a caligrafia veio depois juntar-se à influência bárbara e bizantina, que se reflectiu principalmente no célebre mosteiro do Monte Cassino.
O nome de miniaturista, de miniator, minium, ou seja a aplicação da cor vermelha a certas partes do manuscrito ou do livro, foi totalmente desconhecido na Idade Média, período em que o ilustrador dos códices e manuscritos é designado pelo nome de illuminator.
A designação de miniaturista afirmam alguns autores não ser anterior ao último quartel do séc. XVI; todavia, na opinião do professor italiano Cesare Paoli, já em 1247 o cronista Salimbene dizia, a respeito do frade Enrico de Pisa, o seguinte: «sciebat scribere, miniare, quod aliqui illuminare dicunt, pro eo quod ex minio literi illuminantur»; em Dante, no Purgatório, XI, 79-84, cita um passo saudando Oderisi Dagublio, que diz: «onor di quell'arte, che aIluminare chiamata é in Parisin».
Se é certo ter havido na Antiguidade livros ornamentados com pinturas, como nos provam, além de outros testemunhos, os códices a llíada ambrosiana e o Virgílio do Vaticano, estas pinturas, servindo de ilustração ao texto, não têm relação técnica alguma com a pintura material da escrita do códice.
A miniatura dos códices como complemento da escrita é uma arte propriamente medieval, que nasce da humilde origem do ornato da letra inicial e do título e percorre depois, até o séc. XVI, um esplêndido e glorioso caminho. Na história da iluminura tem-se considerado duas grandes fases: a primeira, designada por «hierática»; a segunda por «naturalista».
Na primeira fase é manifesta e quase exclusiva a influência da Igreja; o pintor, sobre velino, trabalha para o clero e é ele próprio, ordinariamente, um monge; daí o assunto predilecto das suas iluminuras: cenas bíblicas, passos da paixão de Cristo, episódios da vida dos santos; tudo manifestações, enfim, do misticismo medieval cheio de fé e de crença, mas profundamente ingénuo.
Nesta fase da história da iluminura predomina o símbolo; tudo, com efeito, é simbólico, desde os objectos pintados até à cor com que se pintam, por exemplo: um peixe representa um cristão baptizado; uma mulher recolhendo num cálice o sangue que sai da ferida do crucificado, a Igreja recebendo o fruto da paixão de Cristo. (Lecoy de La Marche, Les Manuscrils et La Miniature; Pedro A. de Azevedo e António Baião, O Archivo Nacional da Torre do Tombo).
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,
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