O carácter da iluminura medieval e da obra saída do scriptorium dos mosteiros é, pois, circunscrito às cenas dos livros sagrados, especialmente até os fins do séc. XII, porque até este período a vida intelectual, literária e artística quase só medra nos claustros. As causas deste facto são bem conhecidas e todas filiadas na poderosa influência do clero, que já vinha de longe e que principalmente se acentuou na monarquia visigótica desde a conversão de Recaredo ao cristianismo.
O artista, em todo este período, tem horror ao verdadeiro, a natureza não o interessa, a vida exterior é para ele completamente estranha. As cenas do Apocalipse, principalmente, contribuem para exercer no seu espírito uma influência nefasta, que se fará sentir mesmo nas iluminuras das outras partes da Bíblia.
Assim se justifica o aparecimento de animais simbolizando certos evangelistas, revestindo formas apocalípticas e a figuração de outros monstros, cenas estas que se podem observar no célebre códice da Torre do Tombo – Comentário do Apocalipse do Beato de Liébona.
É este códice ali vulgarmente conhecido pelo nome de Apocalipse de Lorvão, por ter sido recolhido deste outrora famoso mosteiro de freiras cistercienses por Alexandre Herculano, em 1853. Este raro e curioso exemplar, composto de 218 fólios, escritos a duas colunas, com 29 linhas cada, é cópia feita por um certo Egas, em 1189 (era de 1227), e considera-se como tipo característico, entre nós, desta primeira fase da iluminura.
Apreciando o valor do precioso códice, o professor dr. Wilhelm Neuss, na conferência que sobre ele fez em Lisboa, nota a particularidade de nos mostrar o regresso à pureza primitiva da arte descritiva, ainda mais pronunciada que nas artes plásticas irlandesas e nórdicas do séc. X.
Dissolve as cenas de tal forma que as várias partes componentes, sem ter em conta a sua posição mútua na realidade, são colocadas simplesmente umas junto das outras somente para dar a quem contempla testemunho da sua existência. O iluminador adora a narrativa, como se pode ver, por exemplo, na cena da vindima, em que se nos dá a ideia fiel da vida do campo dessa época, quadro interessante (…).
Entre as suas outras bárbaras iluminuras destacaremos: a espada de dois gumes que sai da boca do Senhor; o Sol, que representa a sua face; as sete igrejas; as «chaves da morte e do inferno»; figuras de condenados às penas eternas, em cima um vulcão, cujo interior simboliza o próprio inferno e a sua entrada fechada pela chave de Deus; uma pomba branca, saindo da boca de uma figura aureolada, representando a pura e sã doutrina de Jesus; os três animais: águia, leão e touro, representando, respectivamente, os três evangelistas: S. João, S. Marcos e S. Lucas; no meio o cordeiro de Deus com uma cruz e ao fundo outra figura com outro livro representando o 4.º evangelista, S. Mateus; interessantes são também as figuras de Abbadon equestre, coroado e armado de arco árabe, e a dos três cavaleiros, representação directa dos guerreiros portugueses do tempo de Afonso Henriques (…), e de que o sr. dr. Júlio Dantas se ocupou no seu modelar estudo Os cavaleiros.
Tal é a arte do Apocalipse de Lorvão, que Dieulafoy apelidava de bastante rude e muito curioso, e o citado prof. Neuss considerava extremamente infantil, causando-lhe admiração encontrar, no séc. XII e na Europa um lugar onde se trabalhava de uma maneira tão primitiva.
Esta inclinação a criar monstros apocalípticos não era, afinal, simples apanágio dos pintores dos códices e manuscritos desta época, como faz notar Henry Martin (Les Peintres des Manuscrits et la Miniature en France), pois que os escultores, neste ponto, não lhes ficavam atrás.
E tão desmarcada e abusiva chegou a ser esta inclinação que ela levava, ao que parece, o próprio S. Bernardo a exclamar com vigor: «para que servem no claustro estas monstruosidades ridículas, estas deformidades, estes leões ferozes, estes monstruosos centauros, estes lobisomens, estes cavaleiros combatentes?!».
Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,
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