Segunda-feira, 1 de Agosto de 2005

3 - A ILUMINURA II

    O carácter da ilu­minura medieval e da obra saída do scriptorium dos mos­teiros é, pois, circunscrito às cenas dos livros sagrados, especialmente até os fins do séc. XII, porque até este período a vida intelectual, literária e artística quase só medra nos claustros. As causas deste facto são bem conhecidas e todas filiadas na poderosa influência do clero, que já vinha de longe e que principalmente se acentuou na monarquia visigótica desde a conversão de Recaredo ao cristianismo.

 

    O artista, em todo este período, tem horror ao verdadeiro, a natureza não o interessa, a vida exterior é para ele completamente estranha. As cenas do Apocalipse, principalmente, contribuem para exercer no seu espírito uma influência nefasta, que se fará sentir mesmo nas iluminuras das outras partes da Bíblia.

 

    Assim se justifica o aparecimento de animais simbolizando certos evangelistas, revestindo formas apo­calípticas e a figuração de outros monstros, cenas estas que se podem observar no célebre códice da Torre do Tombo – Comentário do Apocalipse do Beato de Lié­bona.

 

    É este códice ali vulgarmente conhecido pelo nome de Apocalipse de Lorvão, por ter sido recolhido deste outrora famoso mosteiro de freiras cistercienses por Alexandre Herculano, em 1853. Este raro e curioso exemplar, composto de 218 fólios, escritos a duas colu­nas, com 29 linhas cada, é cópia feita por um certo Egas, em 1189 (era de 1227), e considera-se como tipo característico, entre nós, desta primeira fase da iluminura.

 

    Apre­ciando o valor do precioso códice, o professor dr. Wilhelm Neuss, na conferência que sobre ele fez em Lisboa, nota a particularidade de nos mostrar o regresso à pureza primitiva da arte descritiva, ainda mais pronunciada que nas artes plásticas irlandesas e nórdicas do séc. X.

 

    Dissolve as cenas de tal forma que as várias partes com­ponentes, sem ter em conta a sua posição mútua na reali­dade, são colocadas simplesmente umas junto das outras somente para dar a quem contempla testemunho da sua existência. O iluminador adora a narrativa, como se pode ver, por exemplo, na cena da vindima, em que se nos dá a ideia fiel da vida do campo dessa época, quadro interessante (…).

 

    Entre as suas outras bárbaras iluminuras destacaremos: a espada de dois gumes que sai da boca do Senhor; o Sol, que representa a sua face; as sete igrejas; as «chaves da morte e do inferno»; figuras de condenados às penas eternas, em cima um vulcão, cujo interior simboliza o próprio inferno e a sua entrada fechada pela chave de Deus; uma pomba branca, saindo da boca de uma figura aureolada, representando a pura e sã doutrina de Jesus; os três animais: águia, leão e touro, representando, respectivamente, os três evangelistas: S. João, S. Marcos e S. Lucas; no meio o cordeiro de Deus com uma cruz e ao fundo outra figura com outro livro representando o 4.º evangelista, S. Mateus; interessantes são também as figuras de Abbadon equestre, coroado e armado de arco árabe, e a dos três cavaleiros, representação directa dos guerreiros portugueses do tempo de Afonso Henriques (…), e de que o sr. dr. Júlio Dantas se ocupou no seu modelar estudo Os cavaleiros.

 

    Tal é a arte do Apocalipse de Lorvão, que Dieulafoy apelidava de bastante rude e muito curioso, e o citado prof. Neuss considerava extremamente infantil, causando-lhe admiração encontrar, no séc. XII e na Europa um lugar onde se trabalhava de uma maneira tão primitiva.

 

    Esta inclinação a criar monstros apocalípticos não era, afinal, simples apanágio dos pintores dos códices e manuscritos desta época, como faz notar Henry Martin (Les Peintres des Manuscrits et la Miniature en France), pois que os escultores, neste ponto, não lhes ficavam atrás.

 

    E tão desmarcada e abusiva chegou a ser esta incli­nação que ela levava, ao que parece, o próprio S. Ber­nardo a exclamar com vigor: «para que servem no claustro estas monstruosidades ridículas, estas deformidades, estes leões ferozes, estes monstruosos centauros, estes lobisomens, estes cavaleiros combatentes?!».

 

Fonte: Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Lisboa, Editorial Enciclopédia, Limitada, volume XIII, pp. 522-525,

 

Temas:
publicado por Jofre de Lima Monteiro Alves às 05:39
link do post | comentar | favorito

.mais sobre mim

.pesquisar

 

.Outubro 2014

Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31

.Artigos recentes

. 123 - Ex-Líbris de Antóni...

. 122 - MEDICINA MEDIEVAL

. 121 – A Preguiça

. 120 – Basilisco

. 119 – UM NOTÁVEL DESENHO ...

. 118 – Testamento Velho do...

. 117 – Canguru Num Livro d...

. 116 – Banquete Aristocrát...

. 115 - Anfisbena

. 114 – Ex-Líbris de Antóni...

. 113 - A Luxúria

. 112 – Ex-Líbris de Antóni...

. 111 - Grifo

. 110 - Grifo

. 109 – A Ira

.Arquivos

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

. Outubro 2007

. Setembro 2007

. Agosto 2007

. Julho 2007

. Junho 2007

. Maio 2007

. Abril 2007

. Março 2007

. Fevereiro 2007

. Janeiro 2007

. Dezembro 2006

. Novembro 2006

. Outubro 2006

. Setembro 2006

. Agosto 2006

. Julho 2006

. Junho 2006

. Maio 2006

. Abril 2006

. Março 2006

. Fevereiro 2006

. Janeiro 2006

. Dezembro 2005

. Novembro 2005

. Outubro 2005

. Setembro 2005

. Agosto 2005

. Julho 2005

. Junho 2005

.Temas

. todas as tags

SAPO Blogs

.subscrever feeds